segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Gattaca



Os estudos genéticos, com suas predições e profecias, reanimaram os estudos sobre as determinações biológicas nos animais e vêm provocando a força das culturas que se crêem capazes de domesticar e modelar essa suposta natureza pré-figurada dos humanos. O filme Gattaca é exatamente a representação deste limbo, dessa fronteira ainda pouco determinada entre a força da natureza frente à avassaladora sedução da cultura e da socialização.

A nova ordem social era fruto de uma matemática genética estabelecida ao nascer: predisposições genéticas a desordens e caracterizavam os inválidos, ao passo que os válidos eram aqueles com altos índices de "quociente" genético, um conceito eficientemente criado pelo filme para resumir o conjunto de expectativas sociais condensadas pela biologia.

Vincent era um inválido segundo a ordem sócio-genética do mundo representada por Gattaca. Entre pessoas válidas e inválidas, ou seja, entre aquelas nascidas pelo método natural e aquelas geradas com o apoio das tecnologias reprodutivas, o mundo social se organizava.

O currículo de Vincent, assim como o de todos os personagens do filme, dos faxineiros aos diretores do centro espacial, era determinado por células. Sangue e urina eram capazes de resumir o que o fenótipo teimava em esconder.

A uma primeira vista não havia diferenças entre Vincent e seu irmão, Anton, um válido gerado pelas tecnologias reprodutivas que lhe garantiram não ser obeso, não ter predisposição à violência e ter olhos e cabelos castanhos.

Os instrumentos tradicionais de definição e registro da identidade, tais como a raça, perdiam seu sentido diante da força implacável do determinismo genético. E o enredo de Gattaca faz questão de provocar os limites de nosso treino simbólico: o médico que atende os pais de Vincent por ocasião da segunda gestação é um negro, ao passo que o faxineiro-responsável pela limpeza na base espacial era branco. A diversidade racial dos astronautas que acompanham Vincent rumo ao espaço -negros, brancos e amarelos, em posição de igualdade - é impensável para o nosso tempo.

Nossa sociedade democrática está marcada pela raça, pela etnia, pelo gênero, variações físicas do conceito de classe social, assim como Gattaca estava marcada pelas células de DNA. Propositadamente, deslocaram-sem as identidades raciais de seus locais tradicionais: não importa se são pessoas brancas ou negras, o fato é que geneticistas e faxineiros são antes definidos por sua genética molecular que mesmo por sua aparência fenotípica. Os limites raciais foram ultrapassados pela descoberta dessa suposta natureza resistente à perfeição, algo que é capaz de nos nivelar pelas deficiências e falhas.

A inteligência do projeto sóciogenético apresentado pelo filme está no fato de que a identidade das pessoas válidas não se estabelece por um conjunto de valores idílicos que todas as pessoas deveriam compartilhar, tal como vulgarmente sustenta qualquer ideologia de superioridade racial; estabecesse pela ausência de falhas, um processo interminável de definição da perfeição em que o tipo ideal estaria sempre por ser alcançado. Proliferam pessoas quase perfeitas em Gattaca, a tal ponto que o diretor do centro espacial rememora o tempo em que foi preciso aceitar pessoas portadoras de falhas mais significativas. Essa perfeição biológica sempre por alcançar, o geneísmo, isto é, a ideologia que supõe haver uma superioridade genômica de alguns humanos em detrimento de outros, está dentre as filosofias segregacionistas das mais eficazes que a humanidade poderá criar.

Não há tipo ideal, não há modelo de bom. Este é um valor sempre a ser descoberto, mas continuamente balizado pelas falhas das pessoas inválidas. Por isso, arriscaria dizer que não há uma pessoa em Gattaca com "quociente genético" de 100%, uma vez que está é uma medida fruto da esperança genética da perfeição que nunca será alcançada. Esta é, no meu ponto de vista, a realidade.

Muito embora o filme seja uma aposta no futuro da genética e da ciência como agentes controladores da vida social, o enredo nos conduz exatamente à conclusão oposta: se por um lado, Vincent, o protagonista do filme, apóia-se na nova ordem científica para sobreviver e ascender socialmente, ele também representa a falência da profecia genética que lhe foi feita ao nascer. Sua fragilidade física - 99% de chances de parada cardíaca, com uma sobrevida limite de 30,2 anos, não foi capaz de invalidar sua ânsia pela expressão social.

* Análise do filme Gattaca a partir do conceito realidade, sabendo que a realidade é construída pelo homem. Trabalho apresentado como requisito básico da disciplina Sociologia e Antropologia II.

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