segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

No cemitério



Não sei precisar o ano, mas em plena madrugada, às 3h00 da manhã, alguém me telefona e diz que uma mulher estava desenterrando uma pessoa no cemitério da Praça da Bíblia, à época era o único que existia na cidade.
Um pouco desacreditada, desloquei-me até lá. E não é que a mulher estava mesmo tentando desenterrar alguém que havia sido sepultado na tarde daquele mesmo dia?
E ela conseguiu. Desenterrou o homem, batia violentamente em seu rosto e xingava-o com os piores adjetivos possíveis.
Conversando com ela, descobri que o homem era seu amásio. Havia sido preso e acabou falecendo depois de ter contraído o vírus da Aids. O motivo de tanta indignação era porque o amásio não lhe contou que era portador e, portanto, ela temia também estar contaminada. Ela bateu e xingou até se exaurir. Até que alguém aparecesse e colocasse o morto, de novo, em seu devido lugar. Dá para acreditar? Pois acreditem! Eu presenciei a cena.

Nova identidade



Como repórter, já ouvi muitas histórias bizarras, mas esta talvez tenha sido a mais criativa que ouvi. Na visita corriqueira à delegacia de Conchal em busca de boletins de ocorrências, um homem - aparentando ter pouco mais de 30 anos - vestido de terno, chegou ao balcão e disse:
- Por favor, eu queria mudar todos os meus documentos.
- Mas por quê? perguntou um investigador.
- É que fui promovido e agora meu nome é Deus Pai, Todo Poderoso! Quero que coloquem este nome inclusive na minha identidade (RG).
O pessoal da delegacia, que já o conhecia, começou a zoar. Um deles perguntou:
- Mas já quer mudar todos os documentos de novo? Seu nome não era Pai, Filho e Espírito Santo?
E o homem respondeu com a maior seriedade que existe:
- Era, mas agora evoluí e tenho que ter documentos novos.
Levando a brincadeira adiante, um outro da delegacia disse:
- Olha, aqui não fazemos qualquer alteração em documentos, o senhor tem que procurar o cartório. Pergunta aí para a moça, ela é do jornal.
Imediatamente, o homem voltou-se para mim. E resolvi entrar na brincadeira.
- Como é mesmo o seu nome? - perguntei.
E ele: Deus Pai, Todo Poderoso!
- Qual a sua idade, indaguei?
Ele respondeu: eu não tenho idade, sempre existi.
- De onde o senhor é?
Ele disse: estou em todos os lugares. Vim para separar aqueles que já estão salvos.
De novo, perguntei: e para onde o senhor levará os salvos?
Ele: para o planeta solar!
Eu insisti. - Mas lá não é muito quente?
Ele: lá será o paraíso, aqui, o inferno.
Por último, perguntei. - o pessoal da delegacia já está salvo?
Ele: não sei, não posso salvar ninguém através das paredes.
E eu, que moro em outra cidade, estaria salva?
- Eu estou no mundo todo. Quem quiser me ouvir e me seguir, o faça. Do contrário...
Eu desisti.
No final da história fiquei sabendo que o tal homem, muito bem vestido e falando o português corretamente, comparecia à delegacia, ao cartório, ao fórum da cidade, sempre contando a mesma história.
Gente, não é brincadeira. É real. Este homem existe. E parece realmente acreditar mesmo no que diz. Delírio puro!

Gattaca



Os estudos genéticos, com suas predições e profecias, reanimaram os estudos sobre as determinações biológicas nos animais e vêm provocando a força das culturas que se crêem capazes de domesticar e modelar essa suposta natureza pré-figurada dos humanos. O filme Gattaca é exatamente a representação deste limbo, dessa fronteira ainda pouco determinada entre a força da natureza frente à avassaladora sedução da cultura e da socialização.

A nova ordem social era fruto de uma matemática genética estabelecida ao nascer: predisposições genéticas a desordens e caracterizavam os inválidos, ao passo que os válidos eram aqueles com altos índices de "quociente" genético, um conceito eficientemente criado pelo filme para resumir o conjunto de expectativas sociais condensadas pela biologia.

Vincent era um inválido segundo a ordem sócio-genética do mundo representada por Gattaca. Entre pessoas válidas e inválidas, ou seja, entre aquelas nascidas pelo método natural e aquelas geradas com o apoio das tecnologias reprodutivas, o mundo social se organizava.

O currículo de Vincent, assim como o de todos os personagens do filme, dos faxineiros aos diretores do centro espacial, era determinado por células. Sangue e urina eram capazes de resumir o que o fenótipo teimava em esconder.

A uma primeira vista não havia diferenças entre Vincent e seu irmão, Anton, um válido gerado pelas tecnologias reprodutivas que lhe garantiram não ser obeso, não ter predisposição à violência e ter olhos e cabelos castanhos.

Os instrumentos tradicionais de definição e registro da identidade, tais como a raça, perdiam seu sentido diante da força implacável do determinismo genético. E o enredo de Gattaca faz questão de provocar os limites de nosso treino simbólico: o médico que atende os pais de Vincent por ocasião da segunda gestação é um negro, ao passo que o faxineiro-responsável pela limpeza na base espacial era branco. A diversidade racial dos astronautas que acompanham Vincent rumo ao espaço -negros, brancos e amarelos, em posição de igualdade - é impensável para o nosso tempo.

Nossa sociedade democrática está marcada pela raça, pela etnia, pelo gênero, variações físicas do conceito de classe social, assim como Gattaca estava marcada pelas células de DNA. Propositadamente, deslocaram-sem as identidades raciais de seus locais tradicionais: não importa se são pessoas brancas ou negras, o fato é que geneticistas e faxineiros são antes definidos por sua genética molecular que mesmo por sua aparência fenotípica. Os limites raciais foram ultrapassados pela descoberta dessa suposta natureza resistente à perfeição, algo que é capaz de nos nivelar pelas deficiências e falhas.

A inteligência do projeto sóciogenético apresentado pelo filme está no fato de que a identidade das pessoas válidas não se estabelece por um conjunto de valores idílicos que todas as pessoas deveriam compartilhar, tal como vulgarmente sustenta qualquer ideologia de superioridade racial; estabecesse pela ausência de falhas, um processo interminável de definição da perfeição em que o tipo ideal estaria sempre por ser alcançado. Proliferam pessoas quase perfeitas em Gattaca, a tal ponto que o diretor do centro espacial rememora o tempo em que foi preciso aceitar pessoas portadoras de falhas mais significativas. Essa perfeição biológica sempre por alcançar, o geneísmo, isto é, a ideologia que supõe haver uma superioridade genômica de alguns humanos em detrimento de outros, está dentre as filosofias segregacionistas das mais eficazes que a humanidade poderá criar.

Não há tipo ideal, não há modelo de bom. Este é um valor sempre a ser descoberto, mas continuamente balizado pelas falhas das pessoas inválidas. Por isso, arriscaria dizer que não há uma pessoa em Gattaca com "quociente genético" de 100%, uma vez que está é uma medida fruto da esperança genética da perfeição que nunca será alcançada. Esta é, no meu ponto de vista, a realidade.

Muito embora o filme seja uma aposta no futuro da genética e da ciência como agentes controladores da vida social, o enredo nos conduz exatamente à conclusão oposta: se por um lado, Vincent, o protagonista do filme, apóia-se na nova ordem científica para sobreviver e ascender socialmente, ele também representa a falência da profecia genética que lhe foi feita ao nascer. Sua fragilidade física - 99% de chances de parada cardíaca, com uma sobrevida limite de 30,2 anos, não foi capaz de invalidar sua ânsia pela expressão social.

* Análise do filme Gattaca a partir do conceito realidade, sabendo que a realidade é construída pelo homem. Trabalho apresentado como requisito básico da disciplina Sociologia e Antropologia II.